segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Testemunhas


Quem já assistiu ao recém-estreado Animais Fantásticos e Onde Habitam voltou a se expor (ou o fez pela primeira vez) ao universo reripótico e à magia ali encerrada -- mas o que me atraiu a atenção foi o personagem do Jacob Kowalski, o sujeito comum que, ao esbarrar no bruxo/naturalista Newt Scamander, inadvertidamente cruzou o limiar para um aspecto do mundo que poucos conhecem, e acabou completamente fascinado por ele:
"Não, isto não é imaginação minha, sabe, eu não tenho cabeça pra criar coisas como essas"
O que acontece com o sr. Kowalski eu não vou contar, quem quiser que vá ver o filme -- mas o que tenho a dizer é que ele é a mais recente encarnação de um arquétipo fundamental nas histórias de fantasia, o Homem Comum que participa da jornada do Herói e que volta pra contar aos outros aquilo de que se tornou testemunha, e é sobre ele e sua importância que vamos conversar agora.
O exemplo que me vem como sendo o mais antigo é o de Bors, um dos Cavaleiros da Távola Redonda, e um dos três a encontrar o Graal na cidade sagrada de Sarras: quando Galahad é arrebatado em êxtase e cai morto aos pés do Graal, e Percival é iniciado na Companhia do Graal e se torna seu protetor, é a Bors, o mais velho dos três (e o único casado e com filhos), que recai a tarefa de voltar a Camelot e narrar a Artur e à Távola o que testemunhou (e é graças a isso que a história chegou até nós).
No ciclo de Tolkien, temos o heroísmo visível dos guerreiros de Minas Tirith e Rohan contra Sauron e seu exército das trevas, e o menos visível de Frodo em sua jornada de auto-sacrifício para destruir o Anel antes que ele o destrua: mas quem leu direito os livros sabe muito bem que é Sam o verdadeiro centro da história, é pelos olhos arrebatados dele que vemos as maravilhas de Rivendell e Lothlórien e os terrores de Moria e Cirith Ungol, e é ele, que fez a jornada movido apenas pela lealdade, que fica para trás quando os outros seguem para o Oeste além do Mar, para cuidar de sua família, filhos e jardins, e escrever o que viu para preservar a Grande História do fim da Terceira Era.
Dito assim, até parece fácil, não? Basta aguentar até o fim, tentar não morrer no meio do caminho, e você vira o sobrevivente/testemunha, pronto para a fama e a felicidade -- mas existe um risco, algo gravíssimo, pior que a morte, no caminho do candidato a testemunha, e o exemplo clássico está nas crônicas de Nárnia: quem vê Susan, uma das quatro crianças que cruzou o armário para o outro lado, chorando com Lucy a morte de Aslan, ou usando seu arco e flechas na batalha contra a Rainha do Gelo, e por fim se tornando uma rainha em Cair Paravel, mal pode acreditar quando lê, no fim do último livro, a declaração seca e amarga de Peter: "nossa irmã Susan já não é mais uma amiga de Nárnia". O que aconteceu? O pior dos pecados: ela cresceu e se permitiu esquecer tudo o que viu e viveu, a ponto de achar "fofo" que seus irmãos, mesmo crescidos, ainda se lembrem das "brincadeiras" de Nárnia da infância...
Mas isto será possível, dá pra ver uma maravilha do Outro Mundo e chegar a se esquecer dela?
Não é preciso ir muito longe, basta ver o que acontece com os sonhos: quantas vezes você acordou com um sonho absolutamente fantástico que se desintegrou diante dos olhos da mente à medida que a consciência diurna da Alma Oceânica assumia o controle? Nossa percepção, linguagem e filtros culturais nos programam para deixar de lado tudo o que não se conforma à narrativa-padrão, e parte do objetivo de uma Iniciação bem-feita é não apenas dar acesso ao Outro Mundo, mas também treinar a mente a assimilá-lo e integrar devidamente o que foi visto à consciência.
Mas, mais importante que o treinamento, uma certa estrutura de caráter se faz necessária: nos apêndices do Senhor dos Anéis, lemos que Gandalf, após explorar a Terra-Média, começou a estudar os hobbits meio que por curiosidade, e foi ele quem descobriu o grande segredo oculto na natureza hobbítica: aqueles sujeitinhos folgazões, adeptos de boa comida e bebida, camas macias, canções e erva-de-cachimbo, escondiam dentro de si uma resistência inquebrantável que podia, se necessário, permitir a eles passarem sem todos esses pequenos e grandes confortos e suportarem o que fosse preciso enquanto fosse necessário – ele testou algumas famílias hobbits, meio como Mendel fazendo experimentos com ervilhas, até chegar, com Bilbo, à certeza de que sua hipótese estava certa, e isso guiou seus planos para a Terra-Média a partir de então.
E onde nós entramos nisso?
A maioria das pessoas que vem ao Druidismo (ou, como já vimos, que se reconhecem nele) teve uma ou mais experiências do tipo inexplicável, em graus maiores ou menores de maravilhamento, e a exposição às práticas, cerimônias, meditações e histórias abre os portais da Inspiração para eventos ainda maiores; talvez apenas poucos de nós sejamos chamados para os papéis mais heróicos, mas todos nós podemos, ao menos, aspirar a essa mistura de solidez interna e abertura externa que caracteriza as Testemunhas e lhes dá o poder de dedicar suas vidas a passar para a frente o que testemunharam e aprenderam.

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